O doloroso exercício da finitude. Em Amor, Michael Haneke mostra de maneira corajosa o processo de decadência física e psíquica.
Morremos, é fato. Fenômeno óbvio – sabemos racionalmente. Mas, não
raro, o tratamos como se fosse exceção. E o fazemos não só pelo apego à
vida, mas possivelmente também pela falta de representação subjetiva
dessa experiência. Por mais que prevaleça a negação – principalmente
numa cultura como a nossa, que nos convida a viver para sempre – e o
incômodo em relação a esse desfecho, é impossível escapar do que está
por vir. Morre-se a qualquer momento (não diz o ditado que basta estar
vivo?), é inegável. Mas quanto mais os anos passam, temos consciência –
sim, em algum lugar de nós temos certeza – de que nos resta menos tempo a
cada dia. Curioso é que diante do inevitável quedamos abismados, como
se tivéssemos sido traídos. E se haver-se com a própria morte é difícil,
assistir a um objeto de amor definhar de forma irreversível é uma
experiência complexa, que desperta uma gama de sentimentos. E,
principalmente, nos coloca de forma direta com a finitude. É assim no
premiado
Amor.
O austríaco Michael Haneke, autor,
diretor e roteirista, estudou psicologia e filosofia na Universidade de
Viena – uma formação que provavelmente contribui para que
apresente maneiras menos idealizadas de ver o ser humano e as relações. O
filme, aliás, apresenta uma lição desconfortável: o amor não vence tudo
e – por mais que tenhamos vivido belas histórias, apreciado obras de
arte, criado filhos, construído relacionamentos – o peso da decadência
sempre nos ronda. Além disso, o filme nos lembra quanto é trabalhoso
morrer.
Muito além da angústia propriamente dita, dos dramas
existenciais, do luto, do sofrimento e dos problemas sociais e mesmo das
questões práticas, há imenso esforço – tanto físico quanto psicológico –
envolvido no percurso rumo à morte. E não apenas de quem morre, mas
também daquele que, por necessidade ou por escolha, acompanha esse
processo – e, desta forma, também termina por morrer um pouco.
O diretor do intrigante
A fita branca, que mostra primórdios da insanidade nazista, e de
Caché,
sobre a violência dissimulada, expõe desta vez os últimos dias de um
simpático casal de idosos, Georges, vivido por Jean-Louis Trintignant, e
Anne, interpretada por Emmanuelle Riva. Num exercício de despojamento,
os dois atores – que, quando jovens foram ídolos do cinema – expõem ao
olhar impiedoso das câmeras rostos sulcados pelas rugas, cabelos ralos e
desgrenhados e corpos enfraquecidos.
Já na cena de abertura o
espectador – mesmo o mais desavisado – percebe qual será o desfecho
quando bombeiros arrombam a porta do apartamento do casal, abrem as
janelas e constatam o falecimento de Anne, possivelmente ocorrido há
alguns dias. Seu corpo, rodeado de pequenas flores, foi cuidadosamente
arrumado sobre a cama – ela vestida com esmero e penteada. Meses antes,
os dois músicos aposentados viviam uma intimidade marcada pela ternura:
passeiam, vão a um concerto e administram as questões do dia a dia. Ele
elogia a beleza da mulher: “Eu me lembrei de dizer que esta noite você
estava realmente bonita?”. O cenário é um apartamento também antigo,
algo sombrio, porém espaçoso e ainda confortável, repleto de livros,
quadros e discos – objetos que testemunham uma vida marcada pelo gosto
pelas artes. Mas de repente – aliás, como acontece não só nos filmes,
mas também na vida – sobrevém a tragédia: Anne sofre um acidente
vascular cerebral que paralisa metade de seu corpo e a deixa numa
cadeira de rodas.
Em
Amor, assistimos impotentes à
entrada em cena de dois grandes fantasmas da velhice: a solidão e a
dependência. Talvez a desventura pareça ainda mais inquietante porque os
protagonistas são dois intelectuais da alta burguesia, com recursos
culturais e econômicos que – pelo menos teoricamente – deveriam
protégé-los da catástrofe.
Enquanto ainda tem condições de se
expressar, ela procura reagir com dignidade. Mesmo abatido, Georges
cuida dela delicadamente: ajuda a despir-se, usar o vaso sanitário,
tomar banho e comer. Anne não deixa de dizer “por favor” e “obrigada”.
Mas a angústia e o medo do futuro dominam a ambos a cada momento.
“Prometa-me que não me levará mais ao hospital”, pede a mulher com a voz
tranquila e firme, assim que chegam em casa, após a alta médica. Embora
permaneça em silêncio, o marido irá procurar atender a esse desejo, da
melhor forma que lhe é possível. O compromisso, porém, é penoso: ele
assume pessoalmente a maioria dos cuidados cotidianos, enquanto as
condições de Anne pioram.
No decorrer do filme, os diálogos
aparecem gradativamente mais rarefeitos, não há música de fundo; o que
prevalece é a sensação do enorme esforço físico do marido para levantar a
doente, alimentá-la, acompanhá-la ao banheiro, resignar-se enfim a
colocar-lhe o fraldão. Conversa com ela e canta, mesmo quando Anne não
faz mais do que apenas balbuciar. Um dos momentos impactantes é sua
exasperação quando Anne insiste em não comer a papa que ele lhe oferece
às colheradas. Sim, é possível entendê-la: perdeu-se de si mesma de uma
hora para outra, o corpo não responde a seus comandos, está
emocionalmente cansada, profundamente triste e debilitada; a recusa da
comida é arecusa da vida. Ele, por sua vez, exausto e desamparado, tem
cada vez mais dificuldade de sustentar Anne – seja fisicamente, para
mudá-la de posição, ou emocionalmente, para mantê-la viva. Nessa fase,
Georges se nega a atender o telefone; por orgulho ou pudor, não quer
receber visitas e expor sua miséria. Anne não deseja nem ouvir música,
há uma progressiva restrição dos interesses e da energia vital, tudo
parece concentrado na mera sobrevivência.
Para aliviar a
demanda, Georges chega a contratar duas enfermeiras, pagas por hora.
Porém, ambas pouco envolvidas afetivamente e ele descobre que ter as
profissionais por perto pode ser ainda mais desgastante. Paralelamente, a
frieza e o descomprometimento de Eva, única filha do casal, vivida
Isabelle Huppert, tornam o abandono ainda mais evidente. Ocupada com a
própria vida, se emociona e se “preocupa”, desde que o drama dos pais
não ameace suas prioridades. A única ligação dos idosos com o mundo
externo acaba sendo o casal de prestativos porteiros, que sobem de vez
em quando para limpar um pouco a casa ou, incentivados por gorjetas,
fazem compras.
O desafio da trama parece ser dar sentido
justamente ao que escapa ao sentido. Uma metáfora dessa busca parecem
ser as cenas do pombo que insiste em entrar por uma janela aberta e
Georges, repetidamente, se empenha em espantá-lo. Podemos pensá-las
como uma representação da realidade inexorável do envelhecimento e da
finitude que ganham espaço por mais que desejemos afastá-las. Talvez
uma das coisas mais tocantes de
Amor seja o fato de que é
incomodamente possível, factível, verdadeiro. Poderia ser comigo.
Poderia ser com você. Talvez um dia seja...
Amor/ Amour: França, Alemanha, Austria/ 2012/ 127 min/ Direção: Michael Haneke/ Elenco: Jean-Louis Trintignant, Emmanuelle Riva, Isabelle Huppert, Alexandre Tharaud, William Shimell
por Ronaldo D'Arcadia